Alguma vez você já teve que deixar de lado atividades de seu dia a dia para resolver um problema de algum produto ou serviço adquirido, sem que você tivesse contribuído para que esse problema ocorresse? Ou melhor, em razão de um defeito no produto ou serviço causado pelo fornecedor, você, como consumidor, foi obrigado a abrir mão de seu tempo para solucioná-lo, mesmo não tendo culpa alguma?
A Teoria do Desvio Produtivo aborda exatamente situações como essa, quando há necessidade de o consumidor despender seu tempo para resolver problemas decorrentes da relação de consumo.
Esta teoria foi implementada com a intenção de modificar o entendimento geralmente demonstrado pelos tribunais, que é o mero aborrecimento, isso significa que situações como essa configuram simplesmente um mero aborrecimento, ou seja, um simples incômodo do cotidiano, não gerando direito à indenização.
Portanto, a teoria do desvio produtivo busca substituir o entendimento do mero aborrecimento pelo reconhecimento da necessidade de indenizar o tempo despendido pelo consumidor ao procurar resolver problemas causados pelo fornecedor. Muitas vezes, estas situações nunca deveriam ter existido e não decorreram de sua culpa.
Marcos Dessaune afirma que “O tempo vital, existencial ou produtivo é o suporte implícito da existência humana, isto é, da vida, que dura certo tempo e nele se desenvolve. Dito de outra maneira, o tempo total de vida de cada pessoa é um bem finito individual; é o capital pessoal que, por meio de escolhas livres e voluntárias, pode ser convertido em outros bens materiais e imateriais, do qual só se deve dispor segundo a própria consciência”.
Sendo assim, mesmo que o consumidor não tenha dado causa ao problema acarretado, é ele quem precisa renunciar seu tempo para buscar a resolução deste transtorno e, muitas vezes, renunciar de outras atividades, obrigações e competências de sua vida particular, como por exemplo estudo, lazer, trabalho, descanso, para solucionar o defeito ou imperfeição do produto ou serviço causado pelo fornecedor.
A Teoria do Desvio Produtivo é apresentada como uma nova espécie de dano, considerando o tempo como um bem jurídico finito, o qual não é possível de ser recuperado, tendo assim, um valor impossível de ser medido.
Para exemplificar a aplicação desta teoria na prática, trataremos a respeito do recebimento de ligações das empresas telemarketing e teleatendimento de forma exagerada. Todo consumidor conhece alguém ou já recebeu inúmeras ligações de operadoras de telemarketing sem haver solicitado.
Nesses casos, também é possível aplicar a teoria do desvio produtivo, pois esta é uma teoria é utilizada pela jurisprudência para justificar os danos gerados, considerando que, em razão das ligações incessantes, há uma significativa perda do tempo útil do consumidor.
A prática de ligações de empresas de telemarketing e teleatendimento, ou seja, call center é costumeiramente realizada de forma exagerada por bancos e empresas de cobrança. São feitas de forma tão desproporcional que expõem o consumidor à inúmeros constrangimentos e incômodos.
A violação da vida privada do consumidor representa fato suficiente para gerar lesão ao seu patrimônio, como já citado anteriormente, seu precioso tempo. Conforme estabelecido pela Teoria do Desvio Produtivo, o tempo é um bem jurídico e, ao receber ligações em número excessivo em seu celular, o consumidor é sujeitado ao aborrecimento, tendo sua dignidade lesada.
Além disso, uma situação muito frequente é quando o consumidor precisa entrar em contato com o teleatendimento da empresa em que adquiriu determinado produto ou serviço. Além de o atendimento não ser satisfatório, ocorre a não há disponibilização de ferramentas necessárias e suficientes para resolver o problema do consumidor em um único atendimento, sendo obrigado a abrir uma nova diligência para dar andamento e muitas vezes com outro atendente, em outro setor.
Nestes casos, o consumidor aguarda muito mais tempo do que o necessário no atendimento e na espera do novo contato por outro setor, muitas vezes não tendo uma posição a respeito da resolução de seu problema. Estas questões geram ao consumidor cada vez mais insatisfação com relação aos serviços prestados, tendo em conta que a resolução de demandas não ocorre de forma tão célere e ágil comparada a facilidade que teve ao adquirir o produto ou serviço.
O Código de Defesa do Consumidor é bastante preciso ao traçar os direitos básicos dos consumidores. O artigo 6º inciso IV do CDC dispõe que ao consumidor deve ser fornecida proteção contra publicidade enganosa e abusiva, conforme segue:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;
Nestes casos de ligações incessantes, há uma nítida violação das regras de proteção dos consumidores pelo abuso do direito de cobrança das empresas de call center em efetuar inúmeras ligações no mesmo dia. Verificamos então que se trata de um direito fundamental dos consumidores a proteção contra práticas abusivas entrega de algum produto ou serviço. Este abuso ocorre em ligações realizadas para oferecer produtos e serviços e até mesmo nas ligações de cobranças de dívidas, visto que extrapola as prerrogativas do fornecedor, violando de forma intensa os direitos básicos do consumidor. O Código Civil dispõe o seguinte a respeito do abuso de direito:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Maria Helena Diniz esclarece que o abuso de direito é o “uso de um poder, direito ou coisa além do permitido ou extrapolando as limitações de um direito, lesando alguém, traz como efeito jurídico o dever de indenizar”. Ainda nessa perspectiva, o Código de Defesa do Consumidor ordena que:
Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Além disso, é importante ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor considera que o consumidor é vulnerável diante do fornecedor.
Desde a sua criação, a Teoria do Desvio Produtivo vem ganhando força nos tribunais. Em um julgamento realizado em maio de 2019, a 11ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) condenou, por unanimidade de votos, uma empresa de telefonia a pagar 15 mil reais por danos morais a um ex-cliente.
Mesmo após mudar de operadora e cancelar os serviços contratados anteriormente – atitudes realizadas em março de 2017 – o autor da ação foi cobrado por débitos inexistentes durante 1 ano e 3 meses. A decisão transitou em julgado na última terça-feira (4/6).
O consumidor alega que, antes de procurar a justiça, ele tentou solucionar seu problema com o call center da operadora e realizou quatro reclamações na Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), porém, não obteve retorno positivo. Foi relatado que a empresa em questão realizava mais de dez ligações por dia para cobrar o consumidor de forma indevida. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná entendeu que a situação não se tratava de um mero aborrecimento e, no acórdão, o relator Desembargador Fábio Haick Dalla Vecchia destacou que a operadora impôs “ao consumidor inocente o dispêndio indesejado e indevido de seu tempo útil, o qual poderia ser utilizado em atividades produtivas, familiares, dentre outras, para resolver os problemas causados exclusivamente pela falha ou má prestação dos serviços”.
Sendo assim, o Tribunal considerou que a operadora perturbou a paz deste consumidor ao obrigá-lo a desperdiçar seu tempo útil em tentativas frustradas de interromper cobranças indevidas, condenando a empresa de telefonia ao ressarcimento civil por dano moral, utilizando a Teoria do Desvio Produtivo.
No estado de São Paulo, foi instituída a Lei nº 17.334, de 09 de março de 2021 que estabeleceu que além de ligações, as empresas também não poderão enviar SMS e mensagens por aplicativos para buscar o titular da linha ou efetuar qualquer cobrança. Esta lei está em vigência desde 01 de março de 2021 deixando ainda mais unificado o entendimento de que ligações e mensagens em excesso geram indenização, ultrapassando o mero aborrecimento.
Para ter direito à eventual ação de indenização, é necessário comprovar que as ligações provocaram um desequilíbrio psicológico ou algum constrangimento. Isso geralmente ocorre quando as ligações são realizadas de forma muito recorrente em um curto período em diversos dias seguidos, durante período de trabalho ou descanso, mesmo após solicitada a retirada do nome e demais dados da lista de telemarketing.
Sendo assim, caso isso ocorra com você, é importante ter provas para comprovar a situação, como número do telefone, número de protocolo e o horário do recebimento das ligações. Se possível, é interessante fazer uma captura de tela do telefone para comprovar as tentativas excessivas de contato pela empresa.
Recentemente a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) anunciou que vai punir as empresas que usarem robôs automáticos para fazer mais de 100 mil chamadas abusivas de telemarketing por dia, afirmando que esse tipo de disparo em massa de chamadas sobrecarga as redes de telecomunicação sem promover efetivamente a comunicação entre pessoas e empresas. A Anatel estabeleceu que o prazo será de 15 dias para os usuários de números de telefone de forma indevida regularizarem suas atividades, visando acabar com a sobrecarga de chamadas aos consumidores sem que ocorra uma comunicação adequada. Decorrido este prazo, serão bloqueados para realizar chamadas os usuários que extrapolarem o número de 100 mil chamadas diárias ou mais com duração de até três segundos. O bloqueio durará 15 dias ou até que o usuário firme compromisso formal com a Anatel de se abster da prática indevida e apresente as providências adotadas para tanto.
Por fim, entende-se que as empresas devem realizar as ligações de forma moderada, em conformidade com a lei e o bom senso, em caso de ligações para oferecimento de produtos ou até mesmo em caso de cobranças. Caso seu problema não seja resolvido ao seguir as instruções para atender uma chamada e informar o desinteresse nas ligações ou até mesmo bloquear o número de telefone, é indicado buscar um advogado especializado no Direito do Consumidor, o qual conseguirá lhe prestar auxílio de forma fundamentada, utilizando a Teoria do Desvio Produtivo.